01/13/22 em Para ler, Para ver

Cavalcantes e cavalgados

Um ditado antigo e preconceituoso dizia que em Pernambuco se você não é Cavalcante você é cavalgado. É certamente antigo, mas ainda é válido. E é preconceituoso com os pernambucanos, por aplicar exclusivamente a eles uma relação de poder e submissão que é brasileira, profundamente brasileira, tão brasileira que está enraizada até os quintos dos infernos.

Lembrei-me deste ditado quando li a notícia sobre o menino que morreu ao cair de um prédio. O menino estava sob o cuidado da patroa da mãe dele, que havia saído para passear com o cachorro da patroa. O menino foi até uma sacada de serviço no prédio, subiu em um equipamento de ar condicionado e caiu do nono andar. Morreu.

Este texto tem um lado. Evitei escrever no exato momento em que li a notícia. Mas faz três horas que não paro de pensar na iniquidade do que aconteceu. Estou do lado da mãe que perdeu o filho. Do lado dos cavalgados.

Em 2008 eu trabalhei em Recife, morando dois meses num hotel em Boa Viagem, com vindas quinzenais a São Paulo. A cada pouso em Recife, chamavam a atenção duas imensas torres sendo construídas no fim da cidade, ou no começo, junto ao mar, junto ao cais. Voltei inúmeras vezes à cidade e sempre reparava nos dois prédios que os recifenses apelidaram de Torres Gêmeas – foi num destes prédios que o inominável aconteceu. Não é ironia da história os habitantes da Veneza Americana usarem o nome dos prédios que foram derrubados em Nova York, é apenas mais uma das incontáveis manifestações de colonização cultural da qual padecemos nós, os brasileiros. Estes prédios estão no coração de um projeto de revitalização do antigo porto da cidade. Como todos os bons projetos de revitalização urbana brasileiros, a elite decide o que fazer e a ralé que rale para por de pé. Não preciso nomear de gentrificação, me basta lembrar dos Cavalcantes e dos cavalgados, minha pátria é minha língua.

Câmeras de segurança no prédio mostram o menino entrando no elevador e a patroa da mãe dele segurando a porta com uma mão. Com a outra, segurava um telefone junto à orelha. Em seguida, o menino sai do elevador para depois retornar. A patroa volta para a porta, segura a porta, o menino aperta alguns botões, a patroa aperta o botão da cobertura, a porta se fecha, o elevador sobe, a porta se abre, o menino não se movimenta, a porta se fecha, o elevador sobre, a porta se abre, o menino sai, abre uma porta lateral já no saguão, o menino passa pela porta, a porta se fecha atrás dele. Esta é e será a última imagem do menino Miguel Otávio Santana da Silva, cinco anos de idade, em movimento, vivo.

A patroa foi presa e deverá ser indiciada por homicídio culposo, segundo o Jornal do Comércio. Seu marido é prefeito de Tamandaré, cidade do litoral sul pernambucano. Ela se chama Sari Corte Real e foi solta sob pagamento de fiança.

Negligência. Descaso. Era o filho da empregada. A empregada é quase da família. A que horas ela volta? A empregada é preta, a patroa é branca. Cavalgados e Cavalcantes. Pois agora só me faltava ter que tomar conta do filho da minha empregada…

O nome da patroa demorou para sair na imprensa e só saiu mesmo depois que a empregada deu entrevista. Quanto tempo vai levar o processo? Não espanta o presidente do atual desgoverno soltar um “e daí?”. Preciso enumerar “e daís”? Veja o vídeo da Gabriela Priolli, que enumerou alguns. Estão lá ou na nossa memória: João Pedro, Ágatha, Marcus Vinícius, os nove de Paraisópolis, os dez do Ninho do Urubu e uma lista infindável que remonta à escravidão que nunca foi de fato abolida, ainda que de direito tenha sido. Quantas negras de nome Isabel você conhece? Ou Teresa Cristina? São homenagens e esperança dos cavalgados…

Eu posso estar terrivelmente enganado a respeito da patroa. Ou não.

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Atualização em 5/6: a situação fica um pouco pior. Descobre-se agora que a empregada doméstica é, na verdade, funcionária da prefeitura do município onde o marido da patroa é prefeito. Desconheço os códigos penal, civil ou outro que provavelmente coíbe e pune este ato. No código moral, é uma vergonha brutal. Cavalcantes brasileiros cavalgando ao bel prazer as instituições públicas. Jessé Souza tem razão nas suas teses em “A Elite do Atraso”.

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Em tempo: depois de ter escrito, encontrei uma fonte para o ditado. É uma quadra popular do século XIX, que assim dizia: “quem viver em Pernambuco / não há de estar enganado / que, ou há de ser Cavalcante / ou há de ser cavalgado”.

Aqui o jornal: https://jc.ne10.uol.com.br/pernambuco/2020/06/5611430–ela-devia-ter-tido-mais-paciencia—diz-mae-do-menino-miguel–que-morreu-ao-cair-de-predio-no-recife.html

Aqui o vídeo:

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