01/12/22 em Para ler, Para ouvir

…e o coração tranquilo.

Faz tempo. Não tanto tempo que já não possa mais lembrar, mas um incerto tempo que fica difícil precisar. Era uma noite de semana, dessas em que você é jovem e sai de bar em bar; talvez fosse uma quarta-feira, porque os bares morrem numa quarta-feira, asseguram Mário de Andrade e Paulo Mendes Campos. Os bares, eles nascem, eles vivem e ele morrem. O Vou Vivendo, onde eu estava naquela noite, há tempos, ainda vivia. Era um bar em Pinheiros, aqui em São Paulo, que homenageava o choro – tinha um Pixinguinha sentado logo na entrada – e tinha uma cozinha excelente, cozinha de bar. E chope. No segundo andar, um espaço para shows com palco.

Naquela quarta-feira – digamos que fosse mesmo uma quarta-feira, ainda que provavelmente não fosse – eu entrei no Vou Vivendo junto com o Guima, que era o meu parceiro de manter os bares vivos nas quartas-feiras. Entramos, sentamos e bebemos, no que o garçom veio nos avisar que haveria um show dali a uns quinze minutos, no andar de cima. Subimos. Estava vazio.

Vazio, vazio, inapelavelmente vazio, apenas duas pessoas meio que perdidas, que éramos justamente o Guima e eu. De repente, surgiu uma terceira pessoa, pelo lado do palco. Era o artista que daria o show.

Walter Franco! Nunca fui conhecedor das suas músicas, mas já adorava o mantra da mente quieta, espinha ereta e coração tranquilo.

Adianto que não ficamos para o show, não tenho a mínima idéia do porquê. Mas gravei a imagem do artista ali, esperando o horário de começar o próprio show. E ele estava tranquilo, ou pelo menos parecia tranquilo. Não tinha a espinha tão ereta, me lembro de uma leve corcunda. A mente talvez estivesse repassando o que havia ensaiado ou talvez estivesse se esvaziando das outras coisas, aquietando-se para o show. O artista, este sim estava quieto. Creio que estivesse também com o coração tranquilo, mesmo vendo a casa vazia. Afinal, como ele mesmo disse no palco, “o coração tranquilo não significa passividade. Não. Ao contrário. Coração tranquilo é enfrentar todos os desafios respeitando o ser humano em primeiro lugar”.

Walter Franco nunca foi popular e não sei se encheu casas de shows. Morreu ontem. Um jornal o chamou de “o maldito dos malditos”, ao mesmo tempo informava que seus shows lotavam de fãs incondicionais. Onde eles estavam naquela quarta-feira? Eu não era fã, passei por lá por acaso e não fiquei. Seguramente, perdi uma oportunidade histórica de talvez ter um show particular ou de ter um show cancelado por pouco público.

Para mim, desde então, ouço e ouço mais uma vez o mantra. O que ficou foi “Coração Tranquilo”, quatro versos simples numa melodia deliciosa de ouvir. Os músicos que tocam na gravação dessa música são primorosos. Ou talvez não sejam todos eles primorosos, mas a combinação, em estúdio, resultou em algo primoroso. Dois e dois são cinco, entende?

É pura sinergia mágica o resultado de um violão acompanhado da sanfona de Sivuca e do piano de João Donato, com Geraldo Azevedo e Zé Ramalho tocando violas caipiras e Chico Batera quebrando na percussão. Não bastasse esse time, ainda temos o auxílio luxuoso da bateria de Picolé.

Aqui, o som: https://www.youtube.com/watch?v=UCzLZJ_0OTY

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