01/14/22 em Para ler
Um best-seller de sessenta anos atrás, como se fosse ontem
Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, de Carolina Maria Jesus, foi publicado em 1960 e saiu, de cara, com uma tiragem de 30 mil cópias. No seu primeiro ano de vida, o livro vendeu incríveis 80 mil cópias. Como comparação, o livro de ficção mais vendido em 2019 alcançou pouco mais de 94 mil cópias.
Bom, a história do livro é bem conhecida: um jornalista, chamado Audálio Dantas, foi fazer uma reportagem sobre a favela do Canindé, aqui na cidade de São Paulo, e lá se deparou com uma mulher que falou para ele que escrevia nuns cadernos. Ele se interessou, leu, começou a publicar trechos no jornal em que trabalhava e os cadernos viraram livros. Depois de Quarto de Despejo, ela publicou Casa de Alvenaria, em 1962, e mais dois livros em 1963, Pedaços de Fome e Provérbios. E ainda saíram algumas obras póstumas nos anos 70, 80, 90 e 2000.
Joel Rufino dos Santos, historiador e escritor, que publicou uma biografia de Carolina de Jesus em 2009, fez sobre ela o seguinte comentário: passada a novidade, todos a esqueceram, a direita, porque ela expunha a miséria, a esquerda, porque ela não se engajava na luta social.
Lendo este livro, Quarto de Despejo, eu fico com a impressão de que provavelmente, ela só quisesse mesmo viver com dignidade, trazer comida para casa, dar um presente para os filhos e não se envolver com outras questões. O que ela narra, dia após dia, é a luta para conseguir alguns cruzeiros com a venda de material reciclável – que nem era chamado assim na época em que a nossa moeda era o cruzeiro – e com esse dinheiro comprar comida.
O que vemos o tempo todo na leitura deste diário é uma mulher preocupada em não estar na favela, em dar dignidade para os filhos, buscar comida e viver um paradoxo de esperança e descrença nos políticos. Por exemplo:
“Vesti as crianças e elas foram para a escola. Eu fui catar papel.
Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte.
Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos.
E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.”
Em outros trechos do livro, ela cita que espera que os políticos, estes mesmo que ela quer matar, enforcar e queimar, deem um jeito de melhorar a vida dos pobres.
Eu acho importante ressaltar que este livro traz trechos de um diário que ela escrevia em cadernos, de 1955 a 1960, o livro mesmo foi publicado em 1960. O que este livro trazia no momento da sua publicação era um retrato em tudo oposto ao que parecia ser o momento de glória brasileira, o que em alguns momentos se chamou de ‘anos dourados’. Ali na virada dos anos 50 para os anos 60 era um momento de estabilidade e de liberdades políticas, de industrialização e de urbanização, as chanchadas da Atlântida faziam enorme sucesso popular, o Cinema Novo aparecia, a bossa nova encantava o mundo, o futebol ganharia duas copas em sequencia, Adhemar Ferreira da Silva também ganharia duas medalhas de ouro em duas Olimpíadas seguidas e havia ainda a Maria Esther Bueno, então… essa ganharia tudo nos torneios internacionais de tênis… e a Carolina cita o atleta Adhemar para contar que um vizinho saiu correndo de uma peixeira numa briga na favela. Ela demonstra estar sempre por dentro do que acontecia no país, certamente era uma leitora dos jornais que pegava para vender.
Agora, esse momento dos 50 pros 60 era um quando, aqui no nosso país, com uma mão se construía Brasília, com a outra, incontáveis favelas como a do Canindé. Talvez, esse livro tenha sido, na literatura, parecido com o que o Cinema Novo foi nas telas. Um contraponto forte e necessário.
Há, ainda, neste diário, uma narradora que emerge de um modo um tanto quanto curioso. Ela não está nem um pouco satisfeita por morar na favela, que ela chama de quarto de despejo, e isso compreende-se. Revela-se, ainda, uma narradora que não enxerga bondade ou fraternidade nas outras pessoas, o que ela narra é um cada um por si e o meu pirão primeiro, o tempo todo. Ela reclama dos políticos e também faz críticas severas aos vizinhos, mostrando inclusive um preconceito contra nordestinos que era – e é ainda – bem presente no Sul/Sudeste. Ao final da leitura, a gente fica com uma ligeira impressão de que Carolina não devia ser de fácil convivência.
E o seu livro não ficou isento de críticas, claro. A principal delas foi quanto à autoria, houve quem duvidasse que a autora fosse de fato uma mulher negra, pobre, com dois anos de estudos apenas, moradora da favela. Mas Carolina deixa o seu recado ao escrever:
“Há de existir alguem que lendo o que eu escrevo dirá… isto é mentira! Mas, as miserias são reais.”
E numa entrevista, concedida já depois de publicada e famosa, emendou: “Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade.”
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Quarto de despejo
Carolina Maria de Jesus
Editora Ática, 174 páginas