01/11/22 em Para ler
Trinta anos de São Paulo
Agosto de 1989 eu chegava em São Paulo. Já tinha andado por outros lugares, já não apenas era um garoto assustado vindo interior que não entendia a cidade monumental. Mas eu ainda me assustava quando ouvia uma sirene ao longe, se aproximando, e olhava apreensivo a passagem de uma ambulância cortando caminho no tráfego pesado, e eram tantas que passavam, eram muitas mais do que as que eu via raramente nas ruas de Votuporanga, e onde as ambulâncias passavam rapidamente pelas ruas quase livres a caminho da rodovia, levando um doente a Rio Preto, a cidade maior, referencial, equipada, onde tantos votuporanguenses foram curados e outros tantos nem tanto.
Vir para São Paulo foi buscar algo impossível numa cidade pequena, onde você não é só você, mas irmão dos seus irmãos, filho dos seus pais, sobrinho dos seus tios, neto dos seus avós. Anonimato, no fundo tudo se resumiria a isso. Porém, não há anonimato total e não há pessoa saudável que o viva em todos os momentos. E é aí que o migrante começa a buscar laços inéditos, construir referências inesperadas e criar amálgamas surpreendentes. Mas isso é depois… foi depois…
No dia em que cheguei, ou um dia depois, ou dois, não sei exatamente, morreu Raul Seixas. Eu tirava uma soneca à tarde, com o rádio ligado, e acordei ouvindo esta notícia. No mesmo mês, ou no seguinte, não sei, Marisa Monte fazia enorme sucesso com seu show no Palace e Bem que se quis tocava a cada hora nas rádios. Ouvir rádio na cidade de São Paulo foi uma novidade para mim: havia uma rádio que tocava música boa, nova e velha, brasileira e estrangeira, e onde os locutores não gritavam, logo entendi que aquela FM seria o eldorado para meus ouvidos.
Quando cheguei em São Paulo, tive vergonha do meu sotaque carregado de erres e que comia o final das palavras, emendando os gerúndios e pulando os plurais. Fiz um esforço enorme para contorná-lo e toda vez que retorno à casa dos meus pais, e fico por lá três dias, volto para a minha casa trazendo o sotaque na bagagem emocional. E ele me acompanha por alguns dias. E junto com o sotaque alguns sabores entram sorrateiros na minha mala, para ficarem ao meu redor pela semana, ou por mais de uma semana. E junto com os sabores, o desejo de recuperar um tempero que sabe a casa de vó, a cheiro de mato, a céu de chuva.
A rota de chegada na cidade de São Paulo impressiona pelo largura das rodovias, pela quantidade de veículos, pela velocidade que os motoristas imprimem, pela insensatez às vezes controlada com que costuram entre as muitas artérias entupidas, como se o trânsito fosse infartar inesperadamente e colapsar todo o sistema. E essa porta por onde se adentra na cidade expõe o quanto são diversos os lugares de onde as pessoas vem, deixando rastros de suas vidas nas comidas de rua, nas portas das casas, nas casas de fé, nos pontos de diversão, nos espaços de arte, nos lugares de trabalho.
Viver em São Paulo é preciso para entender Sampa e não chamar São Paulo de Sampa. Eu via nos noticiários de TV imagens das avenidas e das ruas, imagens de pessoas em movimento, imagens de carros em movimento, e a cada vez que eu atravessa uma dessas ruas eu sentia uma nostalgia de um sonho de infância vivida em outra cidade. Encarar a dureza da massa de prédios colados que tampam o sol e encanam o vento não foi um fácil no começo e fez muitos amigos meus ficarem apavorados. Não achei feio, aprendi depressa e logo fruí e usufruí dos encantos libertadores que só São Paulo, com sua monumentalidade bestial pode oferecer.
O que eu não sabia quando vim em São Paulo é o quanto São Paulo nos impele a buscar a essência que trazemos de nossos pontos de partida. O melhor modo de viver aqui é reproduzindo em um espaço geográfico delimitado o ambiente com que estávamos acostumados antes. É fazendo do nosso bairro a pequena cidade do interior de onde viemos. Demorei muito tempo, talvez vinte anos, para perceber isso. Talvez leve outros vinte para entender. Talvez minhas filhas que aqui nasceram me ensinem, elas que tanto gostam das férias no interior.
São Paulo me transformou de garoto em homem, de filho em pai, de empregado em empreendedor, de interiorano acanhado e cauteloso em interiorano assumido e saudoso. E ainda assim nunca fui mais paulistano.