01/13/22 em Para ler

Torto Arado & Marrom e Amarelo – dois livros especiais de 2019

De repente, um livro aparece no meio do nosso caminho. Foi o que aconteceu com Torto Arado, de Itamar Viera Junior. É um livraço! Eu tinha ouvido muitos elogios ao livro quando ele foi lançado, no ano passado, mas ainda não tinha lido.

Há uns quatro meses eu li outro grande livro que foi lançado também no ano passado e tem mais ou menos o mesmo tema: Marrom e Amarelo, de Paulo Scott.

Os dois tratam do racismo brasileiro. Marrom e Amarelo de forma direta, pá pum, tapa na cara. Torto Arado, honrando o título que inverte a ordem natural de substantivo depois adjetivo, te pega aos poucos, te chama para dançar, te enreda e por fim te escancara o que o Brasil teima em negar.

Temos então dois livros, lançados no mesmo ano, 2019, que tratam de forma ficcional o que a realidade nos mostra todos os dias e nós, brasileiros, teimamos em negar: somos um país racista!

Torto Arado é a história de quilombolas que vivem numa fazenda na Chapada Diamantina, na Bahia.

É uma das poucas fazendas boa de águas na região, por isso ela se torna o destino dos que só tem seu trabalho a oferecer – um trabalho não remunerado, a força daqueles que trabalham a lavoura do proprietário em troca da morada e da permissão de fazerem seu próprio roçado no quintal e dali tirarem a subsistência com batata-doce, quiabo, abóbora, mandioca, milho, jatobá.

A história se desenrola ao longo do século XX.  No centro dessa narrativa estão duas irmãs e sua família – o pai, a mãe, a avó e mais dois irmãos.

A cena de abertura do romance é um primor! São três páginas e meia que condensam as tensões do romance todo. Nesta abertura, o autor coloca diversos elementos que indicam a vida que as irmãs levam e deixam no ar indagações que a narrativa vai responder.

A veia dessa narrativa, o ponto central, é a relação desta família e das outras que vivem espalhadas pela mesma fazenda com a terra. E é uma relação tão visceral que só faz sentido para quem a vive e vê a terra como parte do seu ser. Não faz sentido para quem vê a terra como um bem, um ativo. Para estes quilombolas retratados em Torto Arado, a terra é parte fundamental de suas essências, a terra é ponto de partida, é a linha que dá contorno e a massa que dá recheio para as suas existências e é, ainda, ponto de chegada de uma vida intimamente ligada à natureza, de onde tudo vem: os perigos e os remédios; as perspectivas e as alternativas; a aprendizagem, os ensinamentos, os deuses. A natureza é a medida do tempo, das coisas e da vida.

Agora, é importante lembrar que esse modo de vida tão precário e marginal não é intencional, ele é antes derivado das ações de outras pessoas. Foram os brancos, nós brancos, que ao escravizarmos os africanos na América e depois abandoná-los à própria sorte com a canetada da Princesa Isabel acabamos decretando seu destino.

Há um meio de mudar isso, pelo menos eu acho que há. E o autor parece achar também, porque é o que ele coloca na sua história: uma das duas irmãs sai da fazenda para estudar e se tornar professora. Por isso, ela entende de onde saiu e age para mudar o que é possível.

E o estudo aparece como o vetor do protagonista de Marrom e Amarelo, este outro romance a tratar, de forma aberta e explícita, o racismo brasileiro. Neste livro, temos o protagonista, que é apresentado como sendo um “importante pesquisador das temáticas da hierarquia cromática entre peles, da pigmentocracia e sua lógica no Brasil, da perversidade do colorismo, das políticas compensatórias e sua compreensão pelas elites”, ou seja um pesquisador e ativista do movimento negro, que é chamado a Brasília para compor uma comissão do governo federal que está discutindo um aspecto específico da política de cotas raciais para a educação. Nisso vai a primeira parte do romance e aqui as caracterizações dos componentes da comissão, os modos como falam e os pontos de vista que defendem mostram não só a extensa pesquisa que o autor fez e como mostram também o seu talento de escritor.

São nestas discussões que aparecem, veladamente, sempre debaixo das boas intenções, o quanto o negro é constantemente rebaixado no Brasil.

Mas em um dado momento da trama, ele, o protagonista, precisa voltar à sua cidade natal, Porto Alegre, por conta de um problema familiar. É aí que fica mais nítido o racismo que impregna a sociedade.

A história se passa no agora, neste Brasil que vai do meio dos anos 1980 ao meio dos anos 2010. E é uma história que ecoa a situação de Torto Arado, trazendo-a para o meio urbano e atual. O protagonista tem um irmão, e a relação entre os irmãos, suas semelhanças e diferenças, suas escolhas e os caminhos que seguiram por conta das escolhas sustentam essa trama. Um deles vai pelo caminho do estudo e é o estudo que lhe permite mudar de situação e de compreender a situação de onde veio.

Estes dois livros merecem a sua leitura. Os dois estão falando de brasileiros que formaram este país e raramente são retratados na nossa literatura. E estão fazendo isso com um talento literário enorme.

E eu acrescentaria mais um aspecto. Os dois livros dão valor à educação. Você talvez se lembre de uma frase já famosa e que volta à tona em toda campanha eleitoral, veio marqueteiro de Bill Clinton quando ele concorria à presidência dos EUA em 1992 e era um dos motes para o discurso dos cabos eleitorais: é a economia, estúpido.

Pois é, um dia, há de chegar esse dia, não os marqueteiros, mas os cidadãos gritarão: é a educação, estúpido!

* * * * * * *

Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, editora Todavia, 2019.

Marrom e Amarelo, de Paulo Scott, editora Alfaguara, 2019.

Assine o clipe cabeceira

Novidades da Cabeceira para você: breve, leve, bem humorado e informativo.