01/14/22 em Para ler

Terra sem mapa – a geografia da memória de Ángel Rama

“Agora entendo: para seu corpo real, essa forma que se conhece e se ama, era necessária uma terra real onde sepultá-la. Compreendo que coubesse a mim, que pesquisava sua terra fantasmagórica, trazê-la aqui, de regresso a seu povoado, entre as casas que persistem quase iguais, para que ela ouça passar o vento que agita com seu ar úmido o carvalho a cujo pé estou sentado.

Nada mais tenho a fazer. Fatigado e triste, como depois de cumprir uma tarefa dura que nos foi atribuída sem que pedíssemos, vou despedir-me de tia Hermínia e receber suas lágrimas. Ela chora como minha mãe, com a mesma contração da boca, e diz simplesmente a verdade:

__ Adeus, filho. Obrigada por ter vindo. Não voltarei a ver você nunca mais, porque agora é a minha vez.

Esta é a vida dela, a quem deixo aqui, entre os seus, debaixo desta terra de sempre, com a qual há de fundir-se; porque não será minha mãe quem ouvirá passar o vento e esperará a chuva e o sol quente, e sim será a terra, nada mais do que a terra quem ,eventualmente, se nela há um ouvido, atenderá ao repetido movimento do ar.

E quando, com mais ardor, o coração dizia que somente um céu esplendoroso podia compensar esta longa vida de trabalho constante, esta injusta partilha do mundo, era este mesmo chão o que veria elevado à glória, era a terra escura e fértil a quem meu pensamento dizia que devia transformar-se num deslumbrante céu, era esta vida mesma a que devia continuar perece. E assim voltava a encontrar-me com a terra, à qual estou atado como um homem.”

(trecho de Terra sem mapa, de Ángel Rama)

Em 2007, o meu amigo Carlos Eduardo de Magalhães me convidou a fundar uma editora junto com ele. Nasceu assim a Grua Livros. E para começar a editora, nós estávamos trabalhando a edição de dois livros, e um destes livros precisava de tradução do alemão para o português. Aí, estávamos trabalhando com o tradutor quando numa pausa, a gente devia estar tomando um café, e ele comentou que a esposa dele tinha uma tradução inédita de um pequeno romance ainda inédito no Brasil, de um escritor uruguaio, e que esta tradução havia sido trabalhada durante um mestrado, um trabalho criterioso, feito com muita pesquisa, e o resultado era muito bom. O autor do romance era Angel Rama, escritor que dá nome a um centro de estudos de literatura latino-americana da faculdade de letras de USP. Nós então, os editores, pedimos para ele nos passar o texto e quando o lemos… foi um encanto.

Angel Rama foi um escritor, crítico literário e pesquisador uruguaio que fez parte de uma geração de intelectuais conhecida como “Geração de 45”, ou “Geração Crítica”, e sua obra compreende teoria literária, crítica, ficção e teatro. Ele trabalhou muito com a teoria da transculturação, que é a transformação cultural que resulta do contato de duas culturas diferentes. Morou e trabalhou em diversos países, no Uruguai, na Espanha, nos EUA e na França e teve uma interlocução produtiva com dois intelectuais brasileiros, Antônio Cândido e Darcy Ribeiro. Ele morreu em um acidente aéreo na Espanha, no final de 1983, quando ia da França, onde morava, para a Colômbia, participar de um congresso de escritores.

A leitura de Terra sem mapa é a leitura da delicadeza e dos encantos da memória. E é, seguramente, um bálsamo para este tempo violento e assustador que estamos vivendo.

A história que é contada aqui vem das histórias que o autor ouvia sua mãe contar da terra dela, a Galícia. O livro é composto por relatos da vida galega na virada do século XIX para o século XX, contados pela voz de um homem sensível que busca manter acesa a presença da mãe através das recordações da infância da própria mãe que ele ouviu quando criança – era a mãe vertendo na infância do filho a sua própria infância, para que assim algo se salvasse na memória.

Abrindo e fechando esses relatos, há dois ligeiramente diferentes, o de abertura chamado “Entrada”, o de fechamento, chamado “Adeus”, nos quais o narrador conta por que escrever sobre esta terra que não está em nenhum mapa, e no entanto existe porque tudo o que existe na memória e alimenta um sonho é real.

Da Galícia vem histórias muito interessantes, como a da peregrinação a San Andrés de Teixido, onde vai morto quem não vai vivo. Curas milagrosas.  Procissões de almas penadas. As histórias por trás dos retratos que enfeitam a parede da casa. A passagem do tempo impressa no movimento dos dedos sobre as contas do rosário.

Em Terra sem mapa há um claro predomínio do elemento feminino: a mãe, a terra-mãe, a natureza e as personagens mulheres, todas elas solitárias e sofridas, porém sempre fortes.

Esta edição traz ainda uma biografia de Angel Rama e um posfácio assinado pela tradutora, Roseli Barros Cunha. Tudo isso embalado numa ilustração delicada e sensível de Maria Luisa Stock, que abrange capa, lombada, quarta capa e orelhas. É como um papel de presente que arremata esta especial encomenda que Rama destinou a sua mãe, vivendo no céu da Galícia.

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Terra sem mapa

Ángel Rama

Grua Livros, 2008

http://www.grualivros.com.br

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