01/12/22 em Para ler

O capitalismo que tira o dele da reta

Há alguns meses, recebi por email um link da Uber com um questionário de pesquisa de satisfação de uso. Sou usuário da Uber e de outros apps, trabalho com pesquisa de opinião desde 1995. Por usar a Uber, eu adoraria dar minha opinião sobre seus serviços, mas por trabalhar com pesquisa de opinião, eu fico impedido, pois uma das primeiras perguntas que quase todo questionário tem é a de filtro de profissões: se o potencial entrevistado trabalha na mesma área abordada na pesquisa, ou se trabalha com pesquisa, marketing e jornalismo em geral, ele é filtrado e não responde a pesquisa. Então, por uma conjunção de interesse profissional com interesse de cliente, cliquei no link para ver como era a pesquisa.

A pesquisa era simples e rápida, com perguntas bem redigidas e sem filtro de profissões. Respondi até o final. Fundamentalmente, o que a pesquisa pedia era para o respondente dar notas para a Uber, para o motorista e para o passageiro, conforme a importância de cada um destes três na qualidade do serviço de transporte que contrato através da Uber. Não sei qual foi o resultado final, mas me parece muito claro que a Uber não se vê como a principal responsável pela qualidade do serviço que contrato com ela.

Isso já foi uns meses, mas me lembrei hoje quando li uma notícia de que “o gerente de políticas públicas e eleições globais do WhatsApp, Ben Supple, afirmou que houve envio massivo e ilegal de mensagens por meio do app de mensagens nas eleições de 2018”, conforme li no site poder360.com.br que repercutiu reportagem da Folha de S. Paulo. Mais adiante na matéria do site, o gerente diz: “Vemos esses grupos como tabloides sensacionalistas, onde as pessoas querem espalhar uma mensagem para uma plateia e normalmente divulgam conteúdo mais polêmico e problemático. Nossa visão é: não entre nesses grupos grandes, com gente que você não conhece. Saia desses grupos e os denuncie”. 

Bem, meu caro Ben, se falando pela empresa você afirma que os grupos são como tabloides sensacionalistas que divulgam conteúdo problemático, você está institucionalmente afirmando que estes grupos são produtos ruins que estão presentes na oferta da sua empresa e para os quais a recomendação da companhia é que o usuário saia deles.

Claramente o WhatsApp lavou as mãos. Parece o mesmo que fez o Facebook quando surgiram os problemas do uso de bigdata direcionado nas eleições de 2016 nos EUA. Lavou as mãos e jogou a responsabilidade numa empresa menor, da qual ninguém nunca ouvira falar. Bom, são farinhas do mesmo saco, o Facebook comprou integralmente o WhatsApp em 2014, mediante dinheiro e troca de ações.

Da mesma forma a Uber tenta jogar para o usuário a responsabilidade do serviço que o usuário contrata com ela.

É algo parecido com o que acontece quando o consumidor compra algo e precisa falar com a empresa, que disponibiliza um serviço de telemarketing gratuito para ouvi-lo. Mas pensando sobre como funciona esse serviço, vimos que ela não está aí para aquilo que ele diz estar. É um gratuito para que o consumidor tenha a sensação de que seu contato é muito importante para a empresa, tanto que ela paga para que ele possa falar com ela, mas é contratado pela empresa a um terceiro, sob a alegação de que o terceiro, por ser especialista nisso, vai fazer isso melhor que a empresa, que pode então se concentrar em fazer bem o seu produto principal.

Isso recebe o nome telemarketing porque é feito à distância, mas no fundo é um serviço distante e de distanciamento entre a industria e o consumidor. Quem ouve o consumidor da empresa não é alguém da empresa, é um terceiro que não tem ligação com essa empresa. O atendente do telemarketing não é empregado da confecção de quem você comprou um camisa com uma manga mais longa que a outra, ele é empregado de uma empresa de tecnologia da informação que presta serviços para a confecção e uma outra centena de empresas. Ele não tem nem porquê assumir a responsabilidade pelo problema do consumidor.

Entre tantos outros, o capitalismo atual tem dois grandes problemas: o primeiro é a distância que as empresas querem estabelecer com seus consumidores, a despeito de seus departamentos de marketing gastarem fortunas em propaganda para nos dizerem o contrário. O outro problema é isentar-se da responsabilidade pela qualidade dos seus serviços. A Uber pode afirmar que ela não me transporta, ela apenas conecta um pessoa que precisa se deslocar com outra pessoa oferecendo uma alternativa de deslocamento. Não. A Uber faz mais do que isso. Quando eu preciso de deslocamento, eu digo que vou chamar um uber, e não que vou chamar um motorista disponível num raio da minha casa que possa me atender cobrando um preço baseado na oferta de carros e na demanda de passageiros. Quem ganha com esse branding não é o motorista nem o passageiro, é a Uber. A mesma coisa vale para o WhatsApp, que pode facilmente coibir grupos numerosos – já que o conteúdo da mensagem é criptografado de ponta a ponta, o que é bom para o usuário.

No princípio do capitalismo, logo após as duas primeiras revoluções industriais, a ponta mais fraca era o trabalhador, insanamente explorado em condições muito precárias de trabalho. No capitalismo digital, é o consumidor. Por mais que o marketing tente nos dizer o contrário. É só olhar quem paga a agência de propaganda.

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