01/12/22 em Para ler

Este é um país que vai pra frente

No festival de iniquidades que se espalha há 519 anos no Brasil, a notícia de que numa escola militarizada em Goiás houve revista íntima em alunos é uma das piores (23/10/2019). Não bastasse o esforço do próprio MEC em fazer mal à educação como um todo, a (má) alternativa se mostra ainda mais cruel. Esse fato tem força para arruinar a reputação que a escola tenha com o aluno. Quando o governo atual se declara conservador, poderíamos pensar que na escola o aluno seria obrigado a escrever 519 vezes a mesma frase, ou a ajoelhar no milho, ou a dar a mão à palmatória, o que já seria, em si, um castigo físico impensável em qualquer manual de educação minimamente sério.

Hoje, um ano depois das eleições de 2018, eu me pergunto se os 49 milhões de brasileiros que votaram em Jair Bolsonaro no primeiro turno estão felizes – se não felizes, pelo menos satisfeitos. Porque o mínimo que eles podem não estar é surpresos. Eu enxergo uma, e apenas uma, virtude positiva no governo Bolsonaro: coerência. Com tudo o que o candidato falava, era claro esperar que o governo desmontasse a estrutura de preservação do meio ambiente, porque era (e é) percebida por ele como inibidora de desenvolvimento. Era nítido que haveria alterações profundas no sistema educacional e de pesquisa científica, porque era (e é) entendido por ele como “marxista-globalista” e determinante para o atraso do país. Era também óbvio que viriam  ações repressoras às pessoas e famílias que não sejam aquilo que o candidato considera adequado, uma vez que bicha, travesti, veado, sapatão, isso tudo é, como o candidato cansou de berrar, uma falha da humanidade. Era previsível que a polícia mataria mais e perguntaria menos, afinal o candidato dizia que direitos humanos são para humanos direitos, o que é um bom trocadilho mas é um mau lema de segurança pública. Era ainda de se esperar, e por enquanto ainda não parece ter acontecido, que as mulheres voltariam a ser donas-de-casa, lugar onde ficar as filhas geradas de “fraquejadas” dos maridos. Enfim, tudo isso estava lá, no discurso, e está aí, nas ações.

Dentre aqueles milhões de eleitores que não podem se mostrar surpresos, está a deputada federal Joice Hasselmann, que em entrevista no dia 24/10/2019 disse: “O presidente não entendeu ainda o que é ser presidente. Infelizmente. Ele não entendeu ainda o tamanho da Presidência da República. […] Eu lamento muito por isso porque eu realmente gostaria que o presidente fosse um estadista. Creio que vai chegar o momento em que ele pode até se tornar um estadista, se entender que ele é o presidente.” Pobre deputada… pobres eleitores da deputada… depois de 30 anos na política, não se torna um estadista, o prazo já venceu. Bolsonaro sempre foi um vereador, primeiro municipal, depois federal, um vereador para tentar defender aqui e ali os interesses da sua pequena paróquia, no caso, os militares de baixa patente. Como a própria deputada disse nesta mesma entrevista, no trecho que suprimi ali acima e reproduzo a seguir: “Infelizmente, o presidente continua agindo como aquele deputado do baixíssimo clero, do bloco do eu sozinho, que nunca soube fazer uma articulação, que nunca foi líder de nada, que nunca presidiu uma comissão, que nunca precisou conversar, estabelecer um diálogo para aprovar projetos importantes.”

Quarenta e nove milhões de brasileiros, ou talvez 58 milhões (votação do segundo turno), não têm nenhum direito de se dizerem surpresos. Não foram poucas as vezes em que muitas vozes mostravam com fatos que nada de bom ou produtivo havia saído dos sete mandatos consecutivos do deputado federal Bolsonaro.

Estão erradas tantas dezenas de milhões de brasileiros? Não inteiramente. Penso em mim mesmo, que naquele segundo turno votei em Haddad. Caso Haddad tivesse sido eleito, eu e outros 47 milhões de brasileiros não poderíamos reclamar, agora, se a história recente estivesse sendo reescrita afirmando que nunca houvera petrolão, nem mensalão, nem sítio de Atibaia, nem dólar na cueca, nem Land Rover pro Silvinho, nem estádio pro Corinthians. Lula Livre é uma bandeira que com uma face expõe a farsa lava-jatista em que um juiz age em conluio com a acusação e com a outra encobre um passado nojento de um partido que traiu aqueles antigos e já quase esquecidos 31 milhões de brasileiros que votaram em Lula no dia 17 de novembro de 1989 – um deles, eu.

Eu tenho lido muita coisa sobre o que nos levou ao governo atual. Há um aspecto sobre o qual eu não li em nenhuma análise de cientista político, sociólogo, antropólogo, jornalista ou comentarista, independente da formação, e que me parece ser importante na equação cheia de termos que desembocou em 49 e depois em 58 milhões de votos para o pior candidato possível: a ignorância do brasileiro. Por mais que estudemos, somos um país ignorante. Temos aqui e ali luminares de sapiência e de aplicação científica, mas somos uma sociedade em que os indivíduos, mesmo ao completarem 20 anos de educação formal, continuam ignorantes e incapazes de relacionar idéias abstratas sem a interferência da emoção. Qual o mote da campanha eleitoral de 2018? Lula livre X antipetismo. Simplório e ignorante ao extremo.

O que estava em jogo em 2018 era como reconstruir o país que havia exposto seus machucados em 2013, quando as pessoas, independentemente de partidos e de pessoas que ocupavam cargos eletivos mostraram que estavam fartas da corrupção e queriam hospitais e escolas e transportes “padrão FIFA”. Este período de cinco anos serviu para que os políticos cooptassem aquela demanda, e quem se saiu melhor foi quem mais atirou pedras no sistema, quem já vinha atirando pedras no sistemas e merda nos ventiladores.

O segundo governo de Lula consumiu a poupança do primeiro para conter a crise internacional. Os dois governos de Dilma foram ruins e quebraram o Brasil. Pior ainda: a campanha de 2014 foi sórdida e mentirosa como a de 2012 para prefeito de São Paulo havia sido e a de 1989, com a mentira da filha rejeitada de Lula, que na verdade não era rejeitada. Mas isso é muito passado, está muito lá atrás para o nosso país que ignora a história. O que todos sabíamos em 2018, mas nossa ignorância não permitia admitir, era que o presidente a ser eleito teria que ser o mais capaz de governar. Ao invés disso, elegemos o mais capaz de brigar, xingar, falar asneiras. E o menos capaz de governar.

Estamos chegando a 2020 sem governo. O que temos é uma única ação que talvez venha a ser positiva no longo prazo, do ponto de vista das contas governamentais, que é a aprovação da reforma da previdência, que aconteceu por obra da Congresso e dos presidentes das suas duas casas. A reforma foi aprovada “apesar” do Executivo. Ainda assim, o desgoverno tem sido hábil em desmontar, destruir e andar para trás, como escrevi acima. Chegaremos a 2022 sem ter conseguido reconstruir o Brasil pós-Dilma, e teremos que chegar a 2026 tendo que reconstrui um outro Brasil pós-Bolsonaro.

Como dizem sempre por aí, o Brasil não é mesmo para amadores. O diabo é que somos apenas amadores, o Brasil tem ainda um enorme passado pela frente e a verdade só liberta aquele que a contesta, porque é capaz então de entendê-la – os que a tomam por fé, continuam a grilhões.

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