01/11/22 em Para ler
Dito e feito
O que é barato sai caro, mas a cavalo dado não se olha os dentes. Eu podia sair daquela enrascada em que me afundava a cada minuto que passava da mesma forma como entrara: com uma mão na frente e outra atrás, e nada em nenhuma delas. Afinal eu não tinha mesmo onde cair morto naquela época e qualquer coisa que me custasse um níquel seria caridade com o chapéu alheio. Quem nasce para vintém nunca chega a tostão, antes eu não esquecesse o que minha avó dizia aos quatro cantos.
Mas o fato é que água mole em pedra dura tanto bate até que fura, e convenhamos que em casos perdidos assim como o meu, o Nicanor, que falava mais que o homem da cobra, dava nó até em pingo d’água. O Nicanor, àquela altura da vida, já tinha feito de tudo um pouco, e eu inclusive conhecia sua fama de, quando vivia em São Paulo, ter vendido bonde para mineiro. Mas me era desconhecido o fato de que, uma vez no Rio de Janeiro, ele acertara a venda do Pão de Açúcar para outro mineiro, mas voltara atrás em tempo de vender a montanha para um paulista que pagava à vista. Como se vê, eu não sabia da missa o terço! Com vinagre não se pega moscas, por isso Nicanor falava das vantagens e mais vantagens que soavam música para meus ouvidos. Antes fossem moucos, mas o mercador não era eu, era ele, e cesteiro que faz um cesto faz um cento, eu sabia que acabaria fechando negócio com o Nicanor, ainda que mais tarde eu chorasse o leite derramado.
No esmero de sua arte parlamentar e persuasória, eu não via luz no fim do túnel, me esforçava para deixar a falastrice de Nicanor entrar por um ouvido e sair pelo outro, mas quê! Ele já me botara minhocas na cabeça e me convencia de que o que não tem solução, solucionado está, logo era melhor fecharmos o negócio, que seria ali no fio do bigode, dada a nossa grande e especial amizade, mas como os tempos são bicudos, você compreende, não é mesmo, é melhor botarmos os pingos nos is, e me esticou um papel esperando o jamegão.
Eu não queria fechar negócio nenhum naqueles dias de pindaíba, em que eu vivia como o senhor é servido e mais não esperava do que a promessa de um emprego na prefeitura se seu Cornélio ganhasse as eleições. Ganhar, ele ganharia, certo como dois e dois são quatro e o sol nasce redondo, mas eu não podia contar com o ovo no cu da galinha. Ainda conjecturei que tendo como lema ‘para os amigos tudo, para os inimigos a lei’, seu Cornélio garantiria os meus próximos anos, afinal eu era amigo. Amigos, amigos, negócios à parte, foi o que ouvi mais tarde, quando precisei fazer das tripas coração para saldar meu negócio com o Nicanor. O jamegão estava lá, eu não podia negar, nem desonrar o compromisso, porque mesmo humilde eu tinha minha honra, um nome a zelar.
Quem tem cu tem medo, e eu não ia mijar para trás nem enfiar a cabeça num buraco. Devo, não nego, pago quando puder, foi o que eu disse ao Nicanor quando ele veio executar o que o papel previa.
‘Você deu o passo maior que a perna, meu caro, e agora não adianta fugir da raia’, eu ouvia Nicanor falar cuspindo no meu ouvido, ‘escreveu não leu, o pau comeu, você sabe como funcionam as coisas por aqui’, ele me dizia, sentado ao meu lado no banco da praça onde em geral fechava seus negócios.
Eu passava os dedos pela aba do chapéu, já sentindo o gosto amargo do pão que o diabo amassou e que eu comeria pelas mãos do Nicanor. E dos que davam coberturas aos seus negócios, pois sempre havia alguém mais parrudo na outra ponta da corda. Na eterna briga do mar com o rochedo, o marisco é quem leva a pior. Afundado até o pescoço, eu sentia o quanto a corda me apertava, e ou pulava miudinho ou veria o sol nascer quadrado.
Voltei para minha casa, na verdade um tapera no fim da cidade, lá onde Judas perdeu as botas, como eles diziam, e remoí durante a noite inteira a insônia dos injustos. O que eu poderia fazer? Como escapar? Se corresse, o bicho pegava, eram muitos os rastreadores do boa fama naquelas bandas. Se ficasse, o bicho comia, e pela mão do delegado, que não saí do bolso do colete dos que bancavam os negócios do Nicanor.
Eu entrara sem ver antes por onde sair, e estava encalacrado, fodido e mal pago. Acendi uma vela a Deus e outra ao Diabo, rezei o que me lembrava e quando o galo cantou eu corri para o terreiro, buscando no azulado da aurora a minha salvação: quem espera sempre alcança.