01/14/22 em Para ler

A noite escura e mais eu – livro de contos de Lygia Fagundes Telles

“Ninguém abra a sua porta

para ver o que aconteceu:

saímos de braço dado

a noite escura e mais eu.

E ela não sabe o meu rumo,

eu não lhe pergunto o seu:

não posso perder mais nada,

se o que houve já se perdeu.

Vou pelo braço da noite,

levando tudo o que é meu:

– a dor que os homens me deram,

e a canção que Deus me deu.”

Este é o poema “Assovio”, de Cecília Meirelles, e dele saiu a epígrafe e o título deste livro maravilhoso de Lygia Fagundes Telles.

A primeira edição do livro é de 1995 e saiu pela antiga editora Nova Fronteira, que é essa que eu tenho aqui comigo. Em 2009 a Companhia das Letras lançou uma nova edição, dentro de um projeto de obra completa da Lygia. Eu já tive também um exemplar dessa edição atual, mas eu emprestei e ele ficou com quem me o livro levou emprestado. Acontece… O fato é que eu gosto muito dessa edição já meio antiga, ela já está um pouco amarelada nos cantos, mas eu gosto dessa capa, que acho que exprime muito bem a ambiguidade de sentimentos que aparece nas personagens dos contos deste livro. É uma capa feita pelo Victor Burton, sobre um detalhe do quadro Eva, de Ismael Nery. E eu gosto muito também do aspecto tátil desse livro, da quantidade de páginas, do tamanho da mancha, da fonte utilizada, ele é um livro muito confortável de ler e agradável de segurar entre as mãos.

Se eu tivesse que escolher meus cinco escritores favoritos, a Lygia estaria entre eles. Sem sombra de dúvida! Aliás, eu vou fazer esta lista, em breve ela aparecerá no meu blog. Bom, Lygia Fagundes Telles é um nome gigantesco da literatura brasileira. E sobre ela a gente pode lembrar a análise do Alfredo Bosi, que a destaca como parte de um grupo de escritores que surgiram nas décadas de 1940 e 1950 e “atestam, em conjunto, a maturidade literária a que chegou nossa prosa de tendências introspectivas”. Lygia está nesse grupo de escritores de romances com tensão interiorizada, que trabalham com os ritmos da observação e da memória para contar o clima familiar de personagens muitas vezes sem norte. É isso que ele fala dela.

Deste volume de contos, eu gosto particularmente do conto “Você não acha que esfriou?”, em que a ação se passa na cama, onde uma mulher e um homem conversam logo após o sexo.

Tem outro conto magnífico, que é “Uma branca sombra pálida”. O título do conto é a tradução do título de uma música conhecida, uma balada pop inglesa, lá dos anos 60, que as personagens ouvem em momentos específicos e uma delas traduz poesia, então tem aí um jogo, e uma disputa, em torno de como o nome da música ficaria em português. Aqui tem uma coisa engraçada, quando eu releio este conto, eu penso que é a gravação da Annie Lennox, a cantora do Eurythmics, que as personagens estão ouvindo, parece que essa versão casa melhor com a atmosfera do conto do que a versão original da música, mas na ideia da autora não deve ser nada disso, porque a versão da música e o livro saíram no mesmo ano, não dava tempo de ter ouvido, escrito e publicado. Bom, esse conto é magistral! Ele tem basicamente uma única cena, em que uma mulher coloca flores num túmulo, e enquanto ela faz isso, ela vai lembrar de porque ela está ali, como as coisas chegaram até ali. E num diálogo com uma borboleta ela vai nos revelar exatamente o que a traz ali. E essa mulher transmite uma tal mistura de sentimentos que a cada vez que eu releio este conto eu acho que é uma coisa, ou outra, e todos fazem perfeito sentido nesta cena.

Tem outro conto estupendo neste livro, que é “Anão de jardim”, em que um enfeite da casa conta a história de um casal durante uma mudança.

E um cachorro que sonha? Esse é o tema do conto “Crachá nos dentes”. E se parece que ele reproduz aquele famoso sonho de outra cachorra – o da Baleia, que morrendo de fome sonha com os preás gordos do paraíso – aqui o cão sonha que é homem. E como ele sofre… como homem e como cão!

Agora, por mais inusitados que possam parecer o cachorro sonhando que é homem ou o anão de jardim contando uma história, o que temos nestes textos é a eterna busca do ser humano para suas respostas existenciais, é a busca do eu, são os encontros de personagens ilhadas por seus conflitos e ainda assim alimentadas de sonho e de esperança.

Uma certa vez, muitos anos atrás, eu pedi um autógrafo para a Lygia, num lançamento de um livro. Esperei mais de uma hora na fila. Quando cheguei à mesa onde ela autografava, eu fiquei impressionado com a elegância e a simplicidade dela. A elegância aparece facilmente nas fotos. E essa elegância aparece muito nítida no seu texto. Este livro é elegante do começo ao fim.

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A noite escura e mais eu

Lygia Fagundes Telles

Companhia das Letras, 128 páginas

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