01/11/22 em Para ler

A mesa do boteco do Planalto

Ah! As discussões nas mesas dos botecos… É difícil algo que se compare a uma boa discussão em mesa de boteco. A mesa de boteco é um território livre que funciona sob regras acordadas tacitamente. Não é explícito, por exemplo, que você não deva se aprofundar longamente na defesa do seu ponto de vista com base em um artigo científico durante mais de oito ou nove minutos. Poder, você até pode, mas verá um ocupante da mesa se levantar dizendo que está apertado e vai aproveitar que a fila na porta do banheiro diminuiu, um outro vai dizer que precisa desesperadamente pedir o telefone daquela pessoa que acabou de lhe dar uma encarada das boas, o fumante vai sorrateiramente até a rua fumar seu cigarro. E você estará só – ou acompanhado apenas de quem não está mais interessado em discutir e quer só balançar a cabeça para frente e para trás, lentamente, tentando não dormir na cadeira .

A discussão na mesa do boteco aceita quase tudo, mas não aceita arrogância. É o território onde arrogância com ignorância se paga. Porque na mesa do boteco vale desfiar um rosário de nomes importantes e conhecidos que validem a sua tese, vale interromper o outro e deixar ser interrompido e vale concordar discordando e discordar concordando, praticado a gloriosa técnica de desconcordar.

Na mesa do boteco você pode desenvolver teorias conspiratórias envolventes que, sem sombra de dúvida, segurarão as pessoas na mesa, a ponto de o fumante ficar parado com o cigarro apagado entre os dedos de uma mão e o isqueiro preso na outra mão.

Na mesa do boteco você pode defender seu ponto de vista citando o vídeo do Youtube e o artigo da Wikipedia e com isso deixar plantada na cadeira a pessoa apertada para fazer xixi.

Na mesa do boteco você pode chamar o garçom para dar o voto de Minerva e sua palavra valerá mais que uma decisão do STF, pois o garçom tem o poder do habeas copus.

Na mesa do boteco você pode arrolar um argumento do qual não tem certeza absoluta, e que dito com firmeza e clareza será aceito pelos outros e você poderá, antes de tomar um gole de cerveja, concluir dizendo “pelo menos é assim que eu vejo”, o que abre imediatamente o espaço para o outro desconcordar de você. E assim caminha a brasilidade, entre desconcordâncias praticamente inúteis e goelas constantemente refrescadas.

Mas – e ao falar um “mas” na mesa do boteco você pode desembestar pela lista de conjunções adversativas que aprendeu na quinta-série, enfiando um “mas, porém, contudo, todavia, no entanto” – mas, dizia eu, a graça e a validade das discussões de mesa do boteco se restringem às mesas dos botecos. Ou aos balcões dos botecos ou, ainda, às calçadas em frente aos botecos. Não obstante – ou ainda assim, apesar disso, mesmo assim, de outra sorte (olha essa, que luxo linguístico!) – não obstante, completava eu, a mesa do boteco extrapolou seus limites e parece ter se instalado em lugares onde ela não se encaixa adequadamente.

No Planalto, por exemplo, e mesmo na mesa do boteco pode-se vale de metonímias,  embora seria no mínimo pedante tentar explicar o que é uma metonímia. O Planalto hoje trata qualquer questão como se estivesse no boteco, mas sem a graça do boteco. No Planalto, são listados todos os argumentos válidos no boteco, o WhatsApp, o Youtube, a Wikipedia, as teorias conspiratórias e até o meu tio que disse. No Planalto, não valem os argumentos científicos elaborados nas universidades e a desconcordância é punida com um pesco-tapa moral, por enquanto. E, no Planalto, o garçom só é chamado porque sabe-se de antemão que ele concorda com quem está falando.

Eu não sei que cerveja estão servindo na mesa do boteco do Planalto. Talvez nenhuma, talvez uma cerveja aguada, ou uma cerveja quente, vencida, choca. Pode ser que seja uma cerveja azul para os meninos e outra cerveja rosa para as meninas. As meninas da mesa do boteco do Planalto tomam cerveja? Toma-se cerveja no planalto? É capaz que não, e talvez isso explicaria tudo. E não resolveria nada.

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