01/13/22 em Para ler

Em cada momento ainda estamos vivos

No ano passado, eu estava empacado num texto que vinha escrevendo e fui conversar com o editor, trocar uma idéia, arejar as idéias, eu fui na verdade pedir uma ajuda para encontrar um caminho para o livro que eu vinha escrevendo, que era uma autoficção. Ao final da nossa conversa, depois de algumas idéias, ele me deu este livro que a editora havia acabado de lançar. Eu voltei para casa e ao final da leitura eu voltei para o meu texto, mudei o rumo dele e o transformei num ensaio. Esse livro aqui mexeu comigo e com o meu texto.

Antes de falar do livro, eu quero falar um pouco sobre autoficção. Eu fui procurar algumas referencias acadêmicas, da área da teoria literária, para tentar definir esse estilo chamado de autoficção. Então eu encontrei uma definição na revista Itinerários, número 40, publicado em 2015, uma revista que é publicada pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, da UNESP. Diz assim: “A autoficção seria uma figura semiótica, um signo pelo qual o autor implícito opera um jogo metaficcional que transborda a ficção e tem impacto ambíguo na imagem do autor.” Ajudou? Não muito?

Bom, a autoficção é um estilo literário relativamente recente, o termo surgiu em 1977 e desde então esse conceito se mistura e se confunde com a autobiografia e com o romance autobiográfico.

O que temos, na autoficção, é um livro com um enredo que gira em torno de aspectos íntimos da vida do autor, sem fronteiras claras entre o que é real e vivido pelo autor e aquilo que é ficcional e inventado pelo autor.

O que faz, então, um livro ser classificado como autoficção?

É quando a história desse livro apresenta uma personagem, que pode ser facilmente identificada com o autor, vivendo um enredo em que a narrativa pode ser também facilmente identificada como real, como tendo sido vivida mesmo pelo seu autor, mas que também é passível de ser posta em dúvida, afinal existe uma possibilidade de esta narrativa ter sido inventada, no todo ou em parte.

A autoficção é um estilo que está em alta já há alguns anos, são vários exemplos de livros que seguem este estilo e tem sido bem recebidos pelo público e pela crítica.

Um dos melhores que eu li é este “Em Cada Momento Ainda Estamos Vivos” , do escritor sueco Tom Malmquist e que foi publicado pela Grua Livros em 2019.

O que este livro traz de diferente em relação a quase todos os outros livros desse estilo é o uso do tempo presente para contar a ação. Eu posso até estar enganado, mas me parece que, de um modo geral, os escritores costumam contar suas histórias no passado. Quando escreve no passado, o autor recebe do leitor uma alta dose de compreensão. Quando escreve no passado, o autor recebe do leitor uma alta dose de compreensão, porque o leitor acaba entendendo que aquela história já aconteceu e o autor já elaborou internamente os seus efeitos.

Neste livro, a escolha do autor pelo tempo presente nos deixa em um certo suspense, porque ao invés de desvendar o passado, aqui o autor nos traz não só para dentro do drama que ele está vivendo como também nos provoca uma apreensão a cada fato novo vivido por ele.

E como falta distanciamento temporal, é como se o narrador ainda não tivesse conseguido elaborar tudo o que ele viveu, porque a poeira não assentou.

Ele conta a história no turbilhão em que tudo está se passando. Ele ainda não deu a volta por cima. A mesma coisa acontece quando um amigo nosso chega pálido para contar que acabou de ser assaltado, e a gente fica estupefato com aquilo que parece que está acontecendo agora. A gente tem o mesmo sentimento do amigo de não conseguir acreditar que aquilo está mesmo acontecendo…

Ler esse livro é atravessar diversos momentos tristes, muito tristes, em que a morte está tão presente que é difícil acreditar que nestes mesmos momentos ainda estamos vivos. Se esse livro caísse nas minhas mãos hoje e eu o lesse hoje, eu o tomaria como uma metáfora perfeita para a pandemia que estamos atravessando: de repente, a vida muda de um jeito tão forte que você não duvida se realmente viveu aquilo que está na sua memória e duvida também do dia de amanhã.

Mas ler esse livro é, ao mesmo tempo, passar pelas lembranças boas, lembranças doces, pequenos momentos felizes aos quais usualmente não damos valor porque não percebemos que ali, enquanto eles transcorrem, a vida acontece.

Este é um livro que vale a leitura, porque é um livro vivo, com uma linguagem pulsante, contando uma história envolvente. E porque o título é um achado.

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Em cada momento ainda estamos vivos

Tom Malmquist, trad. Carlos Rabelo e Leon Rabelo, Grua Livros, 2019

https://www.grualivros.com.br/em-cada-momento-ainda-estamos-vivos/

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