01/13/22 em Para ler
Meu coração, não sei por que…
Hoje chorei ouvindo Carinhoso, do Pixinguinha. Ouvindo e vendo, pois recebi um vídeo com a Orquestra Jovem Tom Jobim, tocando com seus regentes e músicos confinados, cada um no seu quadrado, como tem sido usual ver nas telas nestes dias pandêmicos.
É que Carinhosoremete diretamente à minha avó Leda, mãe de minha mãe. Minha avó era brava, conservadora, tradicional e rígida com regras. Ao mesmo tempo, era uma das pessoas mais simpáticas que já viveram, sorria o tempo todo, conhecia toda as caixas do supermercado pelo nome e delas sabia se eram casadas, se tinham filhos, como iam seus pais e sempre, sempre, sempre engatava conversas que atrasavam a fila. Se entrasse na agência do Bradesco, da qual havia sido uma das primeiras clientes assim que a agência abrira em Votuporanga, e o banco abriu uma agência lá ainda antes de chegar em São Paulo, era uma dificuldade para sair, porque todo caixa e toda ‘Moça Bradesco’ fazia questão de atendê-la e de mandar um abraço e um beijo. Parecia que sua magra aposentadoria por idade valia milhões…
E mais do que isso, minha avó cantarolava o dia inteiro, todos os dias, músicas que haviam sido sucessos num Brasil anterior à Bossa Nova que eu só descobri muitos anos mais tarde. Pelos títulos, lembro-me de poucos: Carinhoso, está claro, Siboney, que ouvi em disco de João Bosco décadas depois, e Cachito mio, que ela cantava com a letra que havia sido usada na campanha para prefeito em que meu avô foi eleito: Nabuco, Nabuco, ó seu Nabuco / nossa esperança é tua eleição / na prefeitura de nossa terra / será para todos a salvação. E outros, muitos outros temas e muitas outras melodias antigas já quando eu era criança, mas como a música atravessa o tempo, de vez em quando eu tropeço nelas por aí. E a saudade dela bate forte, muito forte, tão forte que logo após lembro de um verso magistral de Gilberto Gil para a versão de Time will tell: “Somente o tempo, o tempo só / Dirá se irei luz ou permanecerei pó / Se encontrarei Deus ou permanecerei só / Se ainda hei de abraçar minha vó”.
Essa foto que ilustra o post é antiga, percebe-se, é de um tempo em que eu era bem criança. Pelo arco do alpendre, eu acho que era a casa do meu avô na rua Mato Grosso, mas não tenho certeza, pode ser que sim e pode ser que não. Se for a casa que eu penso ser, a foto deve ter sido batida por volta de 1973 ou 1974.
Meu bisavô, seu Antonio, casou-se três vezes. No primeiro casamento, com a dona Dalila, que teve seu nome homenageado em duas netas, uma delas minha mãe, teve quatro filhas: Laura, Lidia, Leda e Luci. Ele enviuvou e casou-se de novo com Eugênia, a famosa vovó Geni, que eu conheço apenas pelas histórias e pela influência árabe que deixou na culinária da minha avó, que fazia quibe e coalhada semanalmente. Com Eugênia, seu Antonio teve cinco filhos e enviuvou novamente. Minha avó foi meio mãe de todos eles, pelo que falam. Esses irmãos da minha avó se espalharam pelo Brasil e com frequência se reuniam em Votuporanga. A casa dela era uma parada obrigatória e eles chegavam trazendo um barril de chope, tomate e pepino para a salada preparada na bacia e cebola para o quibe cru. Essa é outra memória muito forte que trago da minha avó: a paixão com que seus irmãos a visitavam. Se não era bem assim, era assim que eu via e sentia.
Era carinho, muito carinho, guardado e transbordado para um ser sempre carinhoso. Minha avó.