01/13/22 em Para ler

O Tempo e o Vento

Para mim, o melhor romance da literatura brasileira é O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo.

Eu li O Tempo e O Vento inteiro três vezes e já li trechos e capítulos até perder a conta. A primeira leitura foi por volta dos 20 anos, numa edição antiga que era da minha mãe, de uma editora que já não existe mais, a Aguilar; era uma edição de capa dura, papel-bíblia, letra bem pequena, mas ainda assim uma edição confortável e gostosa de manusear. Depois, eu li na edição da Companhia das Letras, lançada em 2004 para comemorar o centenário de nascimento do Érico Veríssimo, que seria em 2005. Essa edição da Companhia ajuda muito a leitura de uma obra tão extensa, porque traz uma árvore genealógica das personagens e uma cronologia detalhada do Brasil, da obra e do autor. E eu tenho um carinho especial por ela porque foi um presente da minha mulher, quando a gente ainda estava namorando e eu acabava de lançar o meu primeiro livro.

O Tempo e o Vento é um livro muito estudado e muito comentado. As bibliotecas universitárias tem muitas teses sobre ele, as revistas acadêmicas sempre trazem novos artigos e mesmo o YouTube está cheio de comentários. Isso tudo não é à toa, é porque é um livro envolvente, apaixonante e tecnicamente perfeito.

Apesar do seu tamanho – são 2.832 páginas divididas em três partes que por sua vez são divididas em sete tomos e isso tudo junto pesa três quilos e meio! Dá pra assustar, né?, mas não precisa… Apesar do seu tamanho, é um livro fácil de ler e tem um enredo que te faz avançar sem ter vontade de parar.

Bom, o primeiro aspecto que salta aos olhos nesta obra é a sua relação com a história. Essa é uma relação proposital e intencional do autor, ele queria contar a história do lugar em que ele nasceu e viveu, o Rio Grande do Sul.

E para contar essa história, as suas personagens vão vivenciar:

  • o momento final das missões jesuíticas no Brasil,
  • as disputas de fronteira entre portugueses e castelhanos,
  • a guerra pela posse do que hoje é o Uruguai,
  • a Independência do Brasil,
  • o Segundo Reinado,
  • o início da imigração alemã,
  • a Revolução Farroupilha,
  • a Guerra do Paraguai,
  • o início da imigração italiana,
  • a Abolição da Escravatura,
  • a Proclamação da República,
  • a Revolução Federalista,
  • a Campanha Civilista e o assassinato de Pinheiro Machado,
  • a Primeira Guerra Mundial,
  • o Tenentismo,
  • a Coluna Prestes,
  • a quebra da Bolsa de Nova York,
  • a Revolução de 1930,
  • o Estado Novo,
  • a Segunda Guerra Mundial,
  • e a queda de Getúlio Vargas, já no final da terceira parte do romance.

A obra completa atravessa 200 anos de história, de 1745 a 1945, sendo que a primeira parte, O continente, cobre 150 anos, tem uma certa autonomia em relação ao que vem depois e normalmente é tida como mais interessante do que as seguintes.

Já a parte do meio, chamada O Retrato, e a parte final, chamada O Arquipélago, cobrem 50 anos e tem uma certa sobreposição cronológica. Eu acho menos proveitoso ler estas duas partes sem ter lido a primeira, porque a gente perde o histórico familiar que moldou essas personagens todas.

Agora, mesmo tendo lido e relido este livro, eu não alcançava o significado do seu título. Por que estas duas palavras, estes dois substantivos no título, o tempo e o vento? Eu vou tomar emprestada uma análise feita pelo filósofo e sociólogo Jacques Leenhardt, que foi diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, França, e escreveu este, junto com outros intelectuais brasileiros, Érico Veríssimo – o romance da história, editora Nova Alexandria.

Jacques Leenhardt toma o tempo e o vento como oposições temáticas.

O “tempo” representa os poderes que foram constituídos ao longo dos anos e das décadas, é o universo das instituições consolidadas pelo tempo dos calendários: a igreja, a justiça, o corpo político e a família Amaral, que é a fundadora da cidade de Santa Fé, a cidade fictícia onde se passa a historia do romance.

O “vento” é uma metáfora direta dos ciclos naturais que regem os homens e as coisas de um modo que não pode ser controlado pela força do calendário. Ao contrário, estes ciclos influenciam os calendários. Aqui, entra a família Terra Cambará, cujo nome é a composição de dois elementos da natureza, o solo, Terra, e uma árvore, Cambará.

Outro aspecto interessante para o “vento” é a presença do estrangeiro, daquele que vem de fora, em movimento.

Eu acho essa oposição tempo X vento, tradição X ruptura, enraizamento X movimento, uma chave muito interessante para se entender o romance, porque, a meu ver, existe uma virada entre esses elementos.

Tomando o cuidado de não contar para você o que acontece e de não estragar a surpresa da leitura, eu vou resumir rapidamente em alguns tópicos o que acontece na primeira parte desta trilogia. Esta parte conta como o estrangeiro Maneco Terra, um tropeiro paulista se instala no Rio Grande do Sul. Sua filha, Ana Terra, que também é paulista, tem um filho com Pedro, um indígena das Missões.

Depois de deixar o rancho do velho Maneco, Ana Terra chega com seu filho ainda criança ao novo povoado de Santa Fé. Seu filho, também chamado Pedro, cresce e consegue comprar um pedaço de chão onde faz sua casa e sua roça. Um dia ele toma um empréstimo com um agiota vindo de fora, Aguinaldo Silva, mas a lavoura não dá certo e ele perde sua propriedade. A filha de Pedro Terra, Bibiana, se casa com o Capitão Rodrigo Cambará, outro estrangeiro e praticamente um nômade, passa então a ter um único objetivo na vida: retomar aquele pedaço de terra que era de seu pai e onde Aguinaldo ergueu o sobrado, a maior construção de alvenaria da cidade. O filho de Bibiana, Bolívar, se casa então com a filha de Aguinaldo, Luzia. Licurgo, que é o filho deste casamento, herda a fortuna do sogro, fazendo dos Terra Cambará a nova força econômica e política de Santa Fé.

E era aqui que eu queria chegar. Quando os Terra Cambará se tornam poderosos, eles passam para o lado do “tempo”, e Licurgo, que é a quinta geração dessa família, já não se casa com uma estrangeira, pelo contrário, ele se casa com uma prima de primeiro grau, fortalecendo o enraizamento da família.

Vale a menção ao nome desta personagem, Licurgo. Seu nome remete a um lendário legislador espartano a quem se credita a base das regras de Esparta, fazendo da cidade-estado uma criação humana e intencional, e não apenas casual. Outro Licurgo famoso era de Atenas, onde foi um político e filósofo, que cuidou das finanças da cidade sem que nunca se questionasse sua honestidade.

Voltando então à análise de Jacques Leenhardt, o momento em que os Terra Cambará se apossam das propriedades e do dinheiro de Aguinaldo Silva é o ponto de transição: o “vento” deixa de contar a história para ser uma memória das personagens femininas; quem rege agora é o “tempo”, nas mãos das personagens masculinas. A riqueza de detalhes da trama construída por Érico Veríssimo para contar isso é impressionante e cativante.

Agora, se o tempo e o vento são duas forças que se opõem e lutam uma com a outra, qual será a artimanha do vento contra o tempo dos Terra Cambará? Isso está na segunda e na terceira parte deste grande romance.

Vale a leitura e vale uma releitura.

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Este texto é a base do roteiro do vídeo publicado no canal da Livraria Cabeceira https://www.youtube.com/watch?v=UmjzcMmIyaA

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